Sobre as músicas do blog... Não devem ser consideradas simples "fundos musicais" para os textos... Foram escolhidas com carinho e apreço, dentre o que há de melhor... São verdadeiras jóias que superam em muito os textos deste humilde escrevinhador... Assim, ao terminar de ler certo texto, se houver música na postagem, termine de ouví-la, retorne, ouça-a novamente se toda atenção foi antes dedicada ao texto... "interromper uma bela música é como interromper uma boa foda... Isso não se faz!..." Por último, se você conhece uma música que, na sua opinião, combina melhor com o texto, não deixe de enviar sua sugestão...

É impossível...

Música deste post (é bem melhor com música): "Social Call". Composição de Gigi Gryce (1974).  Interpretação de Art Farmer & Gigi Gryce (1955).


Atitude Hedonista - Autor desconhecido


É Impossível...

Gabriel Garcia Marques, em Memórias de Minhas Putas Tristes (página 107), atribui ao imperador Júlio César a conclusão de que "é impossível não acabar sendo do jeito que os outros acreditam que você é"...

Essa colocação tem dado voltas em minha mente há algum tempo e, não raro, se faz presente de forma mais forte quando percebo que estão a tirar conclusões sobre mim ou a pressupor como agirei nesta ou naquela situação...

Fico a imaginar: “estarei me tornando aquilo que os outros acreditam que eu seja?...” Findo esse lapso reflexivo sempre com a mesma conclusão: “bobagem!... As conclusões e pressuposições se basearão invariavelmente naquilo que sempre fui e ... Ainda sou...”

Mas tenho percebido que ao insistir em ser eu mesmo, ao contrário da conclusão de César, desaponto “os outros”... Ah como gostariam que eu fizesse isso assim, aquilo assado...

E assustadoramente (?!) tenho me surpreendido a fazer aquilo que esperam que eu faça... Ainda que a contragosto...

Volta-me assim a questão, porém pondero-a à luz da resposta sobre como as coisas teriam sido se eu tivesse agido segundo meu desejo e não conforme o que era esperado...

E nessa reflexão ocorre-me o cerne da questão que aqui desejo abordar...

Que “ninguém é livre para fazer o quer, ser o que quer”... E que a história, quando retrata personagens que assim pensaram ser, forçosamente acaba por expor traços de excentricidade, de egoísmo, bravura indômita irresponsável... Aqueles que para conquistar o que conquistaram sacrificaram uma, duas, três pessoas, vidas, ou milhares delas, exércitos inteiros...

É aquele cientista persistente que acabou descobrindo fantástica teoria, mas que, para tanto, sacrificou seu amor, sua esposa, seus filhos, a quem não deu atenção, enfiado que estava nas teorias, nos laboratórios, nos livros... É aquele conquistador que construiu o maior império, a maior obra de arte, porém trucidou milhares, fez passar fome outros tantos...

Eles eram livres para fazer isso e por isso fizeram?

A resposta implica num conceito polêmico... Sobre o que é liberdade... Liberdade e conceito parecem-me que já são, intrinsicamente, termos antagônicos; eis que a amplidão sempre almejada à liberdade se choca com o fato de que conceituar é delimitar, é restringir o que se está conceituando aos termos da conceituação....

É bem possível que liberdade e conceito sejam termos daqueles que encerram mais de um significado, mais de uma acepção, segundo as circunstâncias...

Mas indago: será que existem circunstâncias que se sobrepõem às vidas a não ser aquelas que visam preservar mais vidas? Mirando mais próximo, me pergunto se a liberdade abrange o egocentrismo, a satisfação do próprio ser, o hedonismo...

Não me refiro, aqui, ao hedonismo segundo Epicuro, que busca a tranquilidade da alma (epicurismo), mas aquele preconizado por Aristipo de Cirene, contemporâneo de Sócrates, posteriormente reinventado por Julien Offray de La Mettrie, o iluminista francês, mestre do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade) que amoralizou o hedonismo ao converter a tranquilidade d’alma em fleumatismo[1], não importando aí que Jeremy Bentham e Henry Sidgwick tenham atribuído a ele o utilitarismo, subdividido o hedonismo entre psicológico e ético, com a concepção de que o primeiro é a pressuposição antropológica de que na ânsia de buscar o prazer e evitar o sofrimento o homem elege a busca do prazer como sua motivação suprema.

 Afligi-me muito mais o hedonismo ético, teoria normativa a preconizar que os homens devem ver o prazer (os bens materiais) como o mais importante em suas vidas, ainda que diferencie o egoísmo hedonista, em que o indivíduo busca somente o seu próprio bem, do utilitarismo, ou seja, o hedonismo universalista que perscruta a felicidade para o maior número de pessoas tomando isso como fundamento moral e legislativo... A ideia é que é se pode alcançar o máximo de utilidade com o mínimo de restrições pessoais, num reducionismo do direito à simples moral da utilidade coletiva — o que já estamos a ver...

 Num grito de libertação deste critério quantitativo da aritmética dos prazeres, Stuart Mill considera outro aspecto: da qualidade... E elucubra “a lei do interesse pessoal ou princípio hedonístico: cada ser busca o bem e a riqueza e repudia o mal e a miséria. Nessa direção, a moral do interesse individual de Bentham assemelha-se a uma moral altruísta ou social. Mais recentemente o francês Michel Onfray milita na busca de ensinamentos, idéias, pensamentos, a fim de permitir a produção de uma vida diária eufórica.

E daí? — Indago eu... Será que todas essas elucubrações nos tornam mais livres? Ou mesmo, como querem, mais felizes? Representam que somos livres para ser o que queremos sem ferir a ética — a outra, não a criada por eles — humanística de não se construir a própria felicidade às custas da felicidade alheia? Claro que não!

No seu proceder o ser humano passa a considerar “normal”, até corriqueiro, que outrem se sinta insatisfeito com aquilo que faz em busca de ser ele mesmo, em busca da sua felicidade, no exercício da sua liberdade...

Irresponsavelmente, por exemplo, quebra-se um relacionamento amoroso sob o pretexto que se apaixonou por outro... O relacionamento atual? Que se exploda... Ele já não me traz felicidade...  O outro... Ora, o outro que vá a busca da sua “próxima” felicidade... A responsabilidade por quem cativas, tão elevada por Antoine de Saint-Exupéry no Pequeno Príncipe, não cerceia, não quebra a liberdade ante tão radical posicionamento em busca da própria felicidade.

Assim, in  medio, dessumo que realmente ninguém é livre à luz da existência dos anseios dos semelhantes, do compromisso com um utilitarismo maior, que é a felicidade não individual, mas da raça humana...

É concluo, nessa linha, que é, assim, realmente impossível ao ser humano, se não transformar-se naquilo que os outros acreditam que ele é, deixar de se transformar naquilo que seus semelhantes esperam que ele seja.

Quando assim não procede, é alijado, paga a pena que comprova que não se é assim tão livre como se imagina...

... que o diga o velho Marquês de Sade, que pagou múltiplas penas e,  apesar da tolerância de Marie-Quesnet à sua paixão pela filha de quatorze anos de uma carcereira, ainda que amado por duas mulheres, não pode produzir as peças teatrais pornográficas que ele tanto sonhava em fazer quando um dia saísse do hospício... Mal sabe ele que elas teriam se perdido em importância face ao muito mais que transita pela nossa Rede Mundial de Computadores... Acho, mesmo, que a maioria dos filósofos, se soubessem que um dia existiria a Internet, não teriam se dado ao trabalho de filosofar!....

Sade... Bah!...






[1] Neologismo




Nenhum comentário:

Postar um comentário